quarta-feira, 20 de junho de 2012

"Cratera"








...Há coisas mais ermas que o próprio deserto...








"Cratera"


Há um deserto infeliz onde o recanto
Das águas e palmeiras morre aos poucos,
As tâmaras azedam e o vento rouco
Na acidez das dunas forma um manto.

Erma paragem, solidão e desencanto,
Calmo e inóspito recanto que encerra
Toda tristeza que acumula sobre a Terra
E que na vida me fingia um orgulho tanto.

Meu coração, tenda secreta onde descanso
Das caravanas a viagem sem retorno
E o que a Saudade nivelou a calmo ranço;

Pobre infeliz, tão infrutífero restaste
Único grão de confissão ao sangue morno
Que não circula pelo corpo que mataste.


(F.N.A)

"Moedinha nº 1"







...Não atenteis cobranças de miudezas a quem possui riquezas...







"Moedinha nº 1"


Quebrando o cofre azul dos meus trocados,
Contando churumelas sem valor,
Eu sei quanto poupei e os empenhados
Recursos que ainda devo ao cobrador.

Um pobre quando encontra seu ordenado
Dispõe cifra por cifra aos prejuízos
E sabe quanto custa alguns fiados
Na conta de um orçamento sem juízo.

Agora, não cobreis dos muitos ricos
O extrato singular de seus tesouros,
Pois ricos não calculam tico-ticos;

Daí, seja um milhão ou verba presa,
Um rico não declara o peso em ouro,
Nem custos de campanha. Isso é pobreza!


(F.N.A)

terça-feira, 19 de junho de 2012

"Mercado de Risco"





...Os amores declarados de hoje eram as pragas de ontem...

...É de se esperar ao menos alguma lucidez...





"Mercado de Risco"


A velha que herdou uma fortuna
Bem quando enlutou depois dos trinta,
Havia envelhecido e a curta cinta
Já lhe causava dores na coluna.

O bucho mais cresceu e a grossa unha
Somada ao escangalho pela tripa
No corpo de caniço feito a ripa
Deixaram-na igual uma graúna.

Mas nunca lhe faltou foi pretendente:
Quem se ajustasse à falta de atrativo
Jurando pleno amor naqueles dentes.

E não casou jamais, sabendo ela:
Mais fácil é proteger um cofre ativo
Que as custas de amores sem cautela.


(F.N.A)

segunda-feira, 18 de junho de 2012

"Desjejum"






...Fora, tanto afastado da lagoa, o sapo encerra a fome de mosquito a tapa...





"Desjejum"


O sapo cururu foi convidado
Pra festa da cotia, dia desses.
Lustrou a boca larga tantas vezes,
Que o papo ficou ruim de tão inchado.

Não pôde nem comer e bem calado
A língua espichou por entre o dedo,
Pensou papar um rato, teve medo -
E foi tomado a fino e educado.

Dez dias se passaram. Então, curado,
Com a boca desinchada, ele ligou
Pra casa da cotia - um advogado.

- Amigo, eu não comi. Algo incomum.
Quem sabe um acepipe não sobrou
Que dê pra encerrar o meu jejum?!


(F.N.A)

"Túmulo"



"Mocidade infeliz, tuas mãos geladas
Arroxearam os dedos deste Inverno,
Onde a Alma estendi a tanto Inferno
E, de praxe, colhi ramos de Nada"





"Túmulo"


Luz que me maltrata, tanta claridade;
Tanta luz tão nua, amargo plenilúnio;
Tanto alvorecer no arraial, em junho...
Oh, fogueira morta!! Velha mocidade!!

Perdi a feição fingida deste cerebelo
E o meu olhar comum enegreceu ao tanto
Que me assustei perdido ao próprio espanto
O Algum clamor frugal: meu pesadelo.

Não avancei! Parei. Cisma do Atraso,
O limo e o ranço em meu olhar fecundo
Sujastes as fibras de meus olhos rasos.

Não fui ao vento - as ramas esquecidas -
Dormir o sopro a se perder no mundo
Das confissões que sepultei na vida.


(F.N.A)

"Torto"







Cruel é andar no mundo enviesado,
Nos passos sempre tortos que rebelo:
Não sigo, quando mandam a atacado;
Não saio, quando atacam meu castelo.









"Torto"


Já não sei em que beira de abismo
O conceito fingido eu amarrei:
Na alegria, o patíbulo de um rei;
Na tristeza, este usual fascismo.

O Doutor que não fui ou me tornei;
Mas, formado em amargo dualismo:
Esta dor de cabeça onde plantei
O sagrado pulsar do meu batismo

Nas estranhas poções em que bebi,
Nos caminhos de minha encruzilhada,
Tanto quanto sorvi e não fingi.

Se fugi de outras contas na taberna,
Veio o mundo atrelar à minha passada
A rasteira que dei na minha perna.


(F.N.A)

segunda-feira, 11 de junho de 2012

"Pilha"







...Minha ray-o-vac não produz energia alguma...

...Haja luz pra encontrar Os Poucos...




"Pilha"


Cegueta num ensaio, Saramago
Na busca por um homem inocente,
Discorre que a barbárie é um emoliente
Que hidrata o amoral e faz estrago.

Eu mesmo, delegado igual Protógenes,
Às custas do exagero, indo à baderna -
Na busca de um honesto tal Diógenes,
Descubro: falta pilha na lanterna.

Perdido no buraco onde a toupeira
Faz casa, faz mansão e faz harém
Com a verba que restou da empreiteira,

Procuro a avestruz que não anda só,
Pra junto rastejar aos pés de alguém
Que toca sax alto em Jericó!!


(F.N.A)

"Força Motriz"








...O coração é só um músculo sem sentido.





"Força Motriz"


I


Há uma força motriz que move o ranço
E a inveja dos que vivem mal amados.
É preciso ter que andar sob os cuidados
Do Afoxé pra não cair destes balanços...

...Que o mundo deposita em quem é feliz:
Sorrir é perigoso e amar é errado!
A quimera de viver amando é um fado
Nas costas malfadadas de um aprendiz.

Eu fui te amar um dia e tudo aos poucos
Cobriu de incerteza o amor que eu tinha
Com o medo de viver igual a um louco;

E o pouco que me amastes foi temendo
Dos males bem menores que avizinham
O coração de quem está sofrendo.


II


E o pouco que me amastes foi temendo
Da própria luz o seu maior clarão:
Escravo nas masmorras padecendo
Da embriaguez de ratos sobre um pão .

Seguistes sem temer até que um dia,
Os cães, que se desdobram em mil latidos,
Puseram a te acoar, em rastros idos,
Na caça em que se mata por sangria.

Bem quando tu almejavas ser contente,
Alegre ser indeciso que se aflora
Nas fés e aleivosias de um descrente;

Bem quando tu estavas te acalmando,
Chegou uma torrente sem ter hora,
Que a louca Solidão foi te deixando.


(F.N.A)

"Dodecafonia"








...Quantos sons produz uma hemorróida. E várias? Uma dodecafonia.




"Dodecafonia"


Barriga empanzinada que dá sustos
Em todos nós mortais, deuses, cristãos,
Parece um gás mostarda em combustão
Que mal cobre a despesa e outros custos

Que o pobre do marido gasta em cheiro,
Perfume, uns mil Afrins e um patuá,
Pra ver se ele consegue disfarçar
O cachorro que está morto no banheiro.

Então decide: "agora é que me cago!"
Com medo, se arrasta pela cama
Pra ver se salva ao menos os seus bagos

Roxinhos nos pentelhos, igual o nariz
Do pobre que esperava um cú sem rama -
Mas peido é só o que sai do chafariz.


(F.N.A)

"Segunda"







Hora em que a nostalgia é crua manta no frio.








"Segunda"


Segunda em que o sol dormindo
Descansa os pomos da aurora
Que morre enquanto demora
Seu ouro aos poucos sumindo.

Noite que sangra nos terços
À hora da Ave Maria;
Bendita a noite em que o dia
Repousa os anjos nos berços.

Dia, somes pra que não acordem
As feras do pensamento
Que mordem enquanto podem;

Noite fria em céu nevoento,
Onde sangra em tua desordem
Meu sal em tua flor de vento?


(F.N.A)

quinta-feira, 7 de junho de 2012

"Trilha"






...Na curva extrema do caminho extremo (Bilac)






"Trilha"


Voltei pra casa. Tanta ausência minha,
Tanta causa morta, tanta cruz na estrada,
Caminho ausente em tanta dor vizinha.
Que já não sei por que andei por nada?!

Não vi em meu pai o aceno que sofreu
Dessa Saudade que se tem por moda
Sentimental nos corações sem nódoa
Que não choraram o que não se perdeu.

Tamanha é a Vida... Tudo foi passando:
Anos de escola, alguma lua nova
E uma sombra a me seguir chorando...

- Saudade ingênua que não se renova,
Nem sei porque eu me peguei regando
As flores mortas sobre tua cova?!


(F.N.A)

"Bola no Nariz"








...Quer ver a foca bater palminha?









"Bola no Nariz"


A foca, na Islândia, não vê graça
Na vida que ela leva a chute e quique:
Servida de patê em Reikjavic
Comida de esquimó e pastel na praça...

Mas longe da Islândia é um outro fim:
Desliza, bate palma, empina a bola
Na ponta do nariz e põe na sacola
O peixe que barganha ao trampolim.

A foca que é adestrada entende bem
Que em temporada gorda aberta à caça
Melhor nadar num tanque que não tem

A ponta do arpão de seu inimigo.
E assim são tantas as focas engraçadas,
Que batem palma protegendo o umbigo.


(F.N.A)