quarta-feira, 19 de outubro de 2011

“O Aperto do Parafuso”





(Livre artigo sobre o livro “O Bordado da Urtiga”
do jornalista e poeta Gilson Cavalcante.)





O poeta é um fingidor, como atestou Pessoa. Em matéria de versos magros, sempre soube que eu fingia e que todos fingem em menor ou maior proporção. Mas há fingimentos e coisas que estão aí - cruas verdades.

Não fosse só a contemplação frente a um exercício de estilo e a criatividade estalando a copa dos neurônios, o livro premiado do poeta Gilson Cavalcante, mesmo assim, não passaria despercebido. Quando lançou sua nova brochura de abstrações e de recolhimento da arte do estado inerte, tomando a força do verso no inconsciente, despertando-o quando necessário até se tornar palavra e assoviando sons aliterantes sobre o papel, o jornalista, morando em Taquaruçu à época, anunciou seu cabedal de coisas inexplicáveis do “Bordado da Urtiga” por lá mesmo, num estabelecimento que tocava – um Café.

Sempre fui notadamente afeito ao gosto ultrapassado do parnasianismo, mas não deixava de tentar entender a graça sincera que os versos brancos do modernismo de Andrade e Cassiano Ricardo cabiam a meus ouvidos que liam e lêem tantas conversas mortas no cotidiano.

Para chegar à poesia moderna, o certo é que um poeta conterrâneo paraense, o Ney Paiva, havia me presenteado há alguns anos com o livro “A Nave do Nada” – Este um aficionado pelo gênio de Max Martins e ele também um beneditino que escreve no claustro que Bilac perfazia sobre o ofício do poeta que, como um ourives, trabalha e teima e lima e sofre e sua na busca pela Palavra exata – palavra em jóia onde o quilate se desprende do valor do codificável e Tântalo afasta tudo o que é comum das mãos.

Comparações a parte de que o verso poderia ser um processo da ourivesaria, as palavras dos poemas modernos, tão sem rimas em seus cadenciados estranhamentos, me chamaram maior atenção já naquele livro introspectivo de Paiva e me prepararam para o que poderia vir a ler, como a poesia de um colega de profissão.

A poesia de Gilson Cavalcante é fácil desvendá-la, de entendê-la nas palavras claras com que escreve; o difícil é mensurá-las e descortiná-las em seu significado irrestrito. Um artigo não lhe cabe os poemas revelados: não são apanhados de mesóclises, versos alexandrinos, cesuras ou de figuras de linguagem intrincadas beirando oximoros de alguma coisa sacra do Barroco brasileiro; contato se apega ao sons e coisas etéreas do simbolismo mais Pessaniano que exista. Para mim, isso me foi mais cruel: desapegar o ofício de poeta e contemplar que a palavra independe do aspecto, da junção de letras silabadas ou dos aglomerados de figuras abstratas complexas dos fonemas que se articula, ou mesmo do meio onde circula em bocas mal pronunciadas ou em abreviações desconexas da linguagem de uma grande leva de jovens cibernautas.

O Bordado da Urtiga, por mais que pareça, não é um livro fácil e para lê-lo é preciso exercício de entendimento, de maturidade, de desprendimento. Há uma confissão em cada poema e nisso reside a coisa mais genial: o Gilson consegue exteriorizar mensagens mais guardadas – coisas que madrugadas boêmias e serenatas de amor na rua são bem capazes de fazer, mas que poucos tem coragem (ébrios, talvez).

Ninguém se arrisca a sangrar no papel à vista alheia e dizer o que pensa, mesmo que poeticamente. O Bordado é um livro de dor, de satisfação, de amor, de confidencialidade, de sensualidade e de existencialismo – tudo isso sem ser piegas. Há uma construção madura em seus versos que aproximo da contemplação bestificada sobre o mundo no universo Drummondiano, da mesma forma como o poeta vislumbra ecos do existencialismo do fim dos tempos modernos que Rainer Maria Rilke estetizou em seu “Livro das Horas” ou quando serena o poço seco das lágrimas em considerações sobre os relacionamentos em linhas perigosamente maliciosas como Baudelaire.

Pecar ao ponto
Do carbono original
Que a carne nutre
(...)
A ser vício da serpente
Desfruto da árvore da volúpia
(...)
Pecar é meu divórcio.


Em todo compêndio da nova safra de poemas, um em particular sintetiza a busca do autor pela força das coisas em movimento, do autoconhecimento, do ajustar-se consigo não só porque o mundo exige, ou da rudeza das coisas revistas no autoconhecimento.

Nunca me dou por vencido.
O resto que me sobra é asfixia e sombra.
Deixem-me partir, estou atrasado.
Levo para o futuro a fisionomia macia dos parafusos.
Vou apertar meu outro lado.


É por conta disso que o livro do Gilson recebeu premiação digna de nota e isso é reconhecimento justo. Ideal seria “sua confissão do não claustro”, sendo ele um poeta das ruas, dos lugares notívagos, das vivacidades, chegando a mais gentes em bibliotecas, escolas, bares, noites.

Pressuponho que a ordem natural das coisas seja a descoberta deste apanhado de ótimos poemas ao acaso, sem o rigor da obrigação de sua leitura em alguma lista de vestibular, numa natural busca pela beleza do versejar. Mas, que não seja uma defesa bairrista de que temos produção de quilate raro em jazida pouco afeita a dar ouro – a qualidade de um livro isolado num cenário nacional de pouca produção editorial de poesia. Isso desencoraja, pois, afinal versos não vendem, diz o mercado. Mas, se assim fosse sempre, poetas como Gilson manteriam-se guardados. Cabe aí o desnudamento da arte composta e o compartilhar dessa mesma arte sem distinções sócio-culturais.

O Bordado da Urtiga é um livro excelente, porque não mente para seu público – e só quem lê livros assim sabe quando um poeta é um fingidor, que chega a fingir a dor que deveras sente. No caso deste, não há fingimento aparente. As coisas lá são como são, daí arderEm abrasivas como urtiga aos olhos surpresos de quem tomá-lo para ler. Nessa, Pessoa errou feio.



Fredson Aguiar

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