sexta-feira, 27 de novembro de 2009

"Radiografia de um Alcázar"


"Todos amam o poder, mesmo que não saibam o que fazer com ele."

(Benjamin Disraeli)




"Radiografia de um Alcázar"



I


“O Fosso”


Transpor o imenso fosso em sua distância
Levou mais que mil anos de ameaça,
E foi fugindo, como um cão ao redor da praça,
Que o latido assustou velho e criança.

E toda lama está encorpada em ganância
E isso impede que se cruze essa bagaça,
Mas todo fosso sabe bem de sua carcaça:
Um poço fundo, bem maior que a ignorância.

Aquela vala que se dista do castelo
A meia légua da alameda do Reinado
É a piscina que de mandatos faz farelo -

Tanto a quem cruza para dentro do portão,
Como quem sai na porta afora ao ser tocado
Com um grosso chute pela bunda à prestação.



II


“A Paliçada”


Depois do nado entre cobras e caranguejos,
Surge a segunda fonte armada que protege
O encouraçado que à tarde luze o bege
E que ameaça com fofoca a cor do queijo,

Que alguém traga com o intuito de adoçar
O griz sabor do susserano em suas tardes –
A paliçada dos vassalos espeta e arde
No couro incauto se o ciúme lhe roçar.

Três guardiões apontam a estaca contra o peito
De quem é orêia, sem mandato ou é eleito,
Do resplendor que o velocino de Medéia

Causa em clarão aos olhos fartos de Jasão –
Pois eles temem ver escapar de suas mãos
A glória morta do Orfeu das Alcatéias.



III


“A Ponte”


Mas se aos cães que velam as portas do castelo
Jogares carne amaciada de escravos,
Provavelmente, entre lírio e entre cravos,
Um vira-lata há de te ofertar o rastelo

Com que as folhas, junto à ponte, varrerás.
É quando a porta que transpõe ao Califado
Abre as cancelas e estremecem o Cão Zangado
Que dorme adiante sobre um trono azul e lilás.

É dele que próprio Cérbero se amedronta –
Ele quem rege as contas magras, rarefeitas,
Igual um osso em que se rói até a ponta.

Domar a fera, em seu habitat, em sua cova
É assegurar passagem breve nas espreitas
De um corredor que o levará à Casa Nova...



IV


“A Cozinha”


...Mas, antes mesmo que o Deus tu observes
De cara limpa feito um amargo arlequim,
Que se esqueceu do pó na cara e o ar chinfrim,
É na cozinha que tua boca irá às vermes,

Pois um melado te enfiam goela abaixo
Pra que a cruz da escravatura seja eterna
E ao te lembrares do engenho, dobre a perna
Para rezar como escravos cabisbaixos,

Que se ofertam em doação à idolatria;
Que não reclamam do terçado ou da enxada;
Porque sua lida é padecer na agonia.

Duro é sentir o retrogosto que incomoda,
Após o doce repartir a língua aguada
E se dar conta: diabetes tá na moda.



V


“A Masmorra”


Quando na escada, a subir ao chão real,
É das paredes que se ouve um grito longe –
São as memórias da Masmorra do Ideal
Que lembram as carnes imoladas de um monge.

Em cada rastro de camada e em cada tinta,
Há um versinho ou elogio que se entoa
Entre a mobília, entre esquadros, entre a cinta
Com que se curte o couro ruim de gente boa.

No passo a passo que o degrau levar o sapato,
Não te assustes se das matas ao redor
Ouvires gritos de um capitão do mato –

São de fantasmas que inda penam a sofrer,
Pois, até hoje, pagam o ódio do feitor
E se agonizam em se humilhar pra receber.



VI


“A Corte”


Aquela corte que era extensa, hoje, tem mofo
Nas axilas, casacões, jóias, vestidos;
Até o ranço de um bolchevique tem mais juízo
Pois só matou os Romanov com o estofo

Do que merecem os nobres condes sem condado,
A fidalguia sem almoço há muitos anos,
Como os Barões de carro usado, igual ciganos,
E as baronesas em tafetás ruins de brocados

Chega a doer o cheiro de naftalina;
E perante as células do olfato, a etiqueta
Já se alojou em goles fracos de creolina;

Mas toda corte é sempre corte, independente
Que a monarquia esteja morta ou na sarjeta -
Sempre haverá quem se orgulhe de patente.



VII


“Os Bobos”


Após transpor todas as fases do Alcazar,
Se se descobre-se no olhar palaciano,
Que há muitos bobos espalhados nos pianos,
Nas almofadas e nas jias no alguidar;

São bobos que se aprazem em se torcer
Para que os olhos do senhor lhes apiedem
Com uma graça ou um dinheiro quando pedem,
Soltando risos até não mais poder.

Nas horas vagas, arlequins e pierrôs,
Lavam escadas, trocam calhas entupidas
Nos afazeres provinciais que seu mentor

Lhes orienta a cumprir sem lamentar –
E assim penando a inoperância de suas vidas,
Os bobos seguem contorcendo-se a chorar.



VIII


“O Principado”


Diz que há uma disputa pelas jóias da Coroa,
Que se transcende em duas novas dinastias –
Uma legítima, que se diz a de primazia;
Outra bastarda, que o sangue raro côa

A atenção do nobre Rei aos pretendentes –
Que sob a égide do lobo bom de rastro
Concentra as rédeas do tufão sobre o alabastro
Dos que amotinam e dos que são incompetentes...

Cada um valete move as peças do Xadrez
Conforme as damas se enciúmem do Senhor
E cada um se predispõe a ser freguês

E é candidato por linhagem ao bastião
Por um Império que afaga no penhor
De sustentar a Realeza e a Tradição.



IX


“O Rei”


Enquanto o mundo se acerca da nobreza,
O rei vislumbra só o futuro de seu fado –
Que seja herói, inesquecível e eternizado,
Assim espera no altar de sua grandeza;

Se lhe avizinha, em borbotões, a Luz do Trono,
E enquanto os ares se transpõem à estratosfera,
Ele acalma uma a uma as suas feras
Com imersões de água gelada que dão Sono.

Édipo rei, Jasão, Davi, Herodes Antipas
Ninguém lhe toma os sonhos breves do futuro,
Mas o futuro incerto é como nó nas tripas –

Que afoga os rastros do alívio em dor incerta.
E é nessa casa, entre grades e entre muros,
Que a Ilusão encontra, sempre, a porta aberta



(F.N.A)

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